O fascínio pela vida alheia

O esvaziamento e a superficialidade das narrativas lidas em voz alta por Germain, enquanto as corrige, em casa, são quebrados pelo texto intimista e revelador do jovem Claude. O adolescente escreve sobre a experiência de se aproximar de um colega da sala de aula, Rafa – um garoto “normal”, com pais “normais”. O objetivo é entrar na casa da família. É sobre a mistura de intimidades, de histórias que se cruzam mediadas pelo olhar do adolescente, que trata Dentro da casa, dirigido por François Ozon.
Por si só, a curiosidade do personagem é compreensível. Ora, quem nunca quis saber como vive o outro, como são suas relações e sua sexualidade? No caso de Claude, no entanto, seu interesse e o plano de aproximação não se traduzem de forma banal. Ele se reconhece como “elemento estranho”, identificado com a imagem de um dragão sobre a TV que olha ameaçadoramente para a foto da “santa família” no porta-retratos.
A forma que encontra para chegar perto do colega, oferecendo-se para lhe ensinar matemática, é premeditada. Antes disso, porém, ele já acompanhava a rotina da casa, estrategicamente sentado num banco de praça, na mesma rua. Uma vez no interior da casa o garoto percorre cada canto vasculha cômodos e objetos; observa, avalia gestos, aromas e costumes. Fragmentos de conversas ouvidos atrás das portas revelam os conflitos do casal e as angústias tanto de Rafa pai, quanto de Esther, a mãe.
O voyeurismo experimentado pelo protagonista é estendido a Germain e Jeanne. No início o jovem se satisfaz em percorrer discretamente os cômodos da casa, na ânsia de olhar pessoas, até há pouco estranhas, que não suspeitam que estejam sendo observadas. Mas ele quer mais: vê (ou talvez apenas imagine ver) o casal fazendo sexo. No texto Três ensaios sobre a sexualidade infantil, de 1905, Freud associa o prazer de ver (escopofilia) à perversão.
Expondo traços perversos de sua personalidade, o rapaz seduz o professor com suas redações que sempre anunciam que há mais por vir, já que ao fim de cada texto ele escreve: “continua”. Seduz também o colega, o pai e a mãe. Em algum momento do filme, cada um desses personagens, e até mesmo Jeanne, se apaixona por Claude. Mas é Esther, a mãe, que ele quer. Embora ele sinta no início certo desprezo pela mulher, por sua forma de falar e por seus anseios, aos poucos, porém, ela se torna objeto de seu desejo.
Ao penetrar na casa, organizada, limpa e cheirosa, Claude afasta-se da própria realidade: a vida em uma residência bem menor, com o pai, deficiente físico que parece ocupar pouco lugar na vida do filho, e a ausência mãe, que foi embora quando o menino tinha 9 anos. A história de abandono, certamente fonte de sofrimento, é estrategicamente usada pelo rapaz para conseguir a atenção e o afeto das pessoas, numa tentativa de manipular o outro. Não há nessa forma de relacionar-se qualquer resquício de culpa, e é como se as pessoas fossem realmente personagens que pudessem ser manipulados pelo garoto a seu bel-prazer. Em dado momento Germain orienta Claude: “Pare de pensar em meus desejos, pense em você, no que o excita”. Os desejos, porém, já parecem impregnados uns dos outros.
A narrativa, marcada pela partilha, chega ao limite da contravenção. Reconhecendo seu lugar de educador, adulto e responsável, Germain teme as consequências de seu envolvimento, tenta diferenciar-se, mas não encontra em si mesmo forças para reverter a atração, é preciso que interdições externas o barrem – e elas inevitavelmente vêm. Estabelece-se um jogo entre o professor e o aluno – arriscado e ao mesmo tempo estimulante. O jovem escreve especificamente para Germain, que, por sua vez, vê nele o talento para a literatura que gostaria de ter. Isso se revela nas constantes conversas após a aula, que oferecem um toque de fantasia à rotina do professor.
No lugar de observadores, Germain e Jeanne experimentam o gozo de acompanhar o desenrolar da vida alheia como se espiassem pelo buraco da fechadura. É a mulher quem se dá conta, em dado momento da trama, que, após a entrada de Claude na vida do casal, os dois já não mantinham relações sexuais – o desejo parece ter sido canalizado para o prazer de “olhar” os outros, ainda que por meio das palavras escritas pelo estudante.
Ao estudar o brincar e seu papel na organização psíquica, o psicanalista inglês Donald Winnicott afirma que não se pode entender a fantasia apenas como realização alucinatória do desejo ou como forma de enfrentar ou defender-se de uma realidade traumática, mas também como forma de estabelecer relações criativas com o mundo externo.
O brincar – no caso de Claude, o olhar e a escrita – parece ter importância em si, não apenas como meio. “A fantasia é mais primária que a realidade e o enriquecimento da fantasia com riquezas do mundo depende da experiência da ilusão”, escreve Winnicott em 1945.
Desenhando na lousa, Germain ensina: “Um personagem quer realizar seu desejo, mas ao longo do caminho surgem obstáculos; Ulisses quer voltar para casa, mas o ciclope pretende matá-lo, as sereias o hipnotizam e as bruxas o sequestram”. Às vezes, porém, o conflito não está entre o herói e alguém de fora, é interno. Aquiles, por exemplo, se questiona se quer ir para Troia ou ficar com sua amada. Claude não parece ter dúvidas: ele quer fazer parte de algo, estar dentro.
Não importa exatamente de onde, ele anseia ser incluído. Alimenta a ideia de que há outros personagens de quem se aproximar, outras vidas das quais se nutrir. Afinal, como o fim de seus textos indicavam, sempre “continua”...
Dans la maison, 2012 | Dirigido por François Ozon | Roteiro de François Ozon, baseado na peça de Juan Mayorga | Elenco: Fabrice Luchini, Ernst Umhauer, Kristin Scott Thomas, Emmanuelle Seigner, Denis Ménochet, Bastien Ughetto, Jean-François Balmer, Yolande Moreau, Catherine Davenier e Vincent Schmitt | Distribuidora: California Filmes
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